sábado, 30 de agosto de 2014

Dorival é inimigo dos brioches

Não gosto das buzinas de Recife porque prefiro minha casa de Dorival Caymmi. Lembro, preciso comprar pão. Mas Caymmi canta e a padaria é perto, mas perto de trânsito, que é mesmo que longe, muito longe. 

Ouço Caymmi enquanto vejo, bem aqui na minha frente, o coqueiro anão e preguiçoso - o lar oferecido ao descanso das drupas. E ao meu também. Coqueiro: me lembra cadeira, pernas aéreas, vontade de sesta… Não lembra automóveis.

Mas preciso comprar o pão. Mas tenho necessidade de ouvir o término da frase cantando “Vivo na beira da praia, com a sorte que Deus me deu…”. Mas preciso ir à padaria. Mas a vontade é dizer não. Mas vou. Mas fico. 

Mas e mas… vivo entre esses poréns. Por que não dá pra comprar pão e ouvir Caymmi, sem barulho de buzinas? Por que não posso ir à padaria e ficar, ao mesmo tempo, aqui, no meu descanso musical? 

Pois é assim viver em cidade que tem sido grande. Queria que fosse menor.; pequena e silenciosa, sabedora da grandiosidade do músico. Não há cidade tão grande quanto a voz grave, certeira, descansada, do meu amigo de paz… Dane-se isso de comida! Decreto meu regime e fico sem pão. Tudo é algo que não cabe na vida. Canta, Dorival. 




quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Tua boca, sereno

Quero a tua boca, do teu lar quero sereno
Quero a tua roupa, do teu quarto sem dono
Com teu abraço ao fim da tarde
Vou morrer sem fôlego, teu colchão desarrumado

Quero a tua boca, do teu lar quero sereno
Quero a tua roupa, do teu quarto sem dono
Com o canto da noite, descortina e abre
Vou partir a tua pele, nosso piso bagunçado

Quero a tua boca, do teu lar quero sereno
Quero a tua roupa, do teu quarto sem dono
Com tuas mãos e trêmulo, deito em tua face
Vou amanhecer em ti, rouquidão é nossa arte

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

O dálmata não está na gola

Vangloriar-se por vestir uma camisa com um jacaré costurado na camisa é o mesmo que orgulhar-se por andar com uma manga rosa amarrada no joelho. 

Se a cúpula da moda quiser impor o acessório da fruta, basta investir em propaganda. Com o tempo, o povo acreditará que é sedutor ter fiapos de manga escorrendo pelas canelas. 

Pessoas que se acham superiores por causa do animal que cuidam na camisa pólo deveriam perceber que são adestradas por homens mais ricos. Talvez, assim, fossem mais humildes.

As pessoas são essencialmente carentes. Querem ser amadas. Mas elas não querem confessar a carência, e aceitam dizer que querem, na verdade, reconhecimento. 

Dá no mesmo: somos bebês pedindo carinho. Precisamos de elementos de distinção: serão responsáveis por recebermos mais afagos. 

É justo recebermos mais, se fizermos mais pela sociedade. Isso é inegável; como é também saber que essa regra é comumente desrespeitada. 

Então é racionalmente normal afirmar que quem pode comprar mais não é melhor, necessariamente, que quem pode comprar menos. 

É por isso que o elemento das camisas não vale nada: ele é mentiroso. Diante da marca, o homem ainda tem que provar o seu valor. 

Nosso caráter não depende da pelúcia. Cavalo com homem em cima segurando taco, jacaré de linguinha pra fora, pardal voando, rinoceronte comendo pitanga… Gosto muito dos animais, mas, nesse caso, respeito não é questão de zoológico.

domingo, 24 de agosto de 2014

Sem sentido

Sem sentido existe mundo
Das paredes, nossas bordas
Linhas carcerárias 
Que nos prende ao chão

Sem sentido existe mundo
Sem janelas, sem luz
Ar sufocado, ansioso
Pela falta de sol

Sem sentido existe mundo
É visitar tudo 
E todos conhecer
Mas ainda assim, ser vazio



sábado, 23 de agosto de 2014

Ovídio leu Virgílio


Virgílio conhece o amor. E ele sabe que a paixão tem movimentos indiretos e silenciosos. Para o apaixonado, ser claro é ser extremamente sem graça.

Não existe paixão sem espera, sem o furto da surpresa. A claridade incomoda os olhos e o coração. Por isso, o apaixonado está no breu, esperando.

Sobre todas as coisas Virgílio entende, mas sabe mais sobre o incêndio, que surge da fagulha. Sentamos e pedimos por fogo contra o frio das coisas óbvias. Pedimos e pedimos, apenas por uma prece, porque da boca não sai nada além de suspiro.

Nós, apaixonados, gostamos da poesia, que é o cadeado das razões. É o deposito da vida nas entrelinhas seguras de um poeta atormentado, mas esperançoso. Estar apaixonado é pedir, silenciosamente, para ser solicitado; e sofrer por não ser.

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

"Seres humanos, disse Scitovsky, querem experimentar prazer. E quando eles consomem, realmente sentem prazer - enquanto as coisas consumidas são novas. Mas as pessoas se adaptam - quando a novidade vai embora - e o prazer é substituído por conforto. É uma maravilha dirigir um carro novo por algumas semanas; depois disso, é apenas confortável. Certamente é melhor que o carro antigo, mas não é lá essas coisas. Conforto é bom o suficiente, mas as pessoas querem prazer. E conforto não é prazer.”. Barry Schwartz

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Entrevistas e Capitão Planeta


O principal objetivo da minha vida é me desfazer do desnecessário, e evitá-lo. É inútil ouvir Aécio, Dilma, Eduardo, Marina. É como tentar achar seriedade nas palavras de Pato Donalds sobre a Política de Platão. Ou nas de Teco, em cima de uma árvore, brincando com Tico, enquanto discorre sobre astrologia. Meu sofá é mais querido: não o uso para tempo perdido. 

É por isso que não assisti às entrevistas. Nem as procurarei no Youtube - ali tem coisa melhor, como piadas do Zé Lezin que, pelo menos, melhoram meu humor. Ficar com as entrevistas é o mesmo que parar no meio da rua, olhar para esses outdoors com sorrisos falsos, e esperar que do adesivo pule Jesus Cristo, distribuindo milagres. 

Propaganda: a arte de enganar os outros. Mas posso dizer que é isso, também: a arte de falar o que o povo quer ouvir, sem que, necessariamente, haja alguma verdade no que foi dito. Ofício de político tem sido revestir a cara de embalagem. Talvez eu ouvisse o que têm a dizer, se fossem tenores, e se eu gostasse da ópera. Mas não é o caso: nem o falsete que usam soa bem.

Não descobrirei o que o político faz pela boca dele, já que dela sai o que for conveniente. Se eles fossem mudos, teriam mais valor; iríamos procurar o que realmente importa: ações. Procuro, então, os atos, usando meu critério político único e angular: o que fez pela educação? Quem fez mais, e melhor, ganha. Saúde, segurança, economia, são questões secundárias diante da educação do povo. A educação é como água derramada em uma superfície: sai cobrindo tudo. 

Há muito que não vejo TV, se não para assistir jogos de futebol, que é das minhas maiores paixões. Mas, se me sobra tempo, tenho que elogiá-lo, por ser o bem de maior valor. Não assisitirei um segundo sequer dessas entrevistas. É que, diante da escolha da comédia, eu, muito feliz, fico com Scooby Doo.

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Centro

Não há vida fora do centro - o centro dos umbigos, das palmas, das solas. Quiseram os violinos, chorosos, ouvidos dos habitantes estrangeiros, mas estavam fora do centro. 

Ficaram a sós, os violinos e os estranhos, e, carentes, demoliram as terras para além do centro, restando o ajuste limitado do pequeno pedaço de salão. 

Ela, que queria, queria, queria… queria como viagem, como o vulto das janelas, intervalando o som insistente de voltar. E ele, que de lá vinha sem saber, atropelou-se, para dentro do ritmo das ventanias intermitentes. Quiseram; como colisão. 

O centro, mudez do centro. Quando a bagagem, dos dois, sonolentos viajantes, debruçaram-se na mesma curva, morreram lados, diagonais, tudo além do centro. Os passantes, os violinos, os invejosos: vão! Ficou a pista e só. Silêncio. Façam silêncio! Só existe o centro - dos olhos de um par. 


domingo, 17 de agosto de 2014

Felicidade e coisas


A felicidade não está nas coisas. Embora às vezes facilitem, tudo depende mesmo do dono. Porque é possível ter tudo e ser um atormentado; ter nada e ser realizado. Ela não está nas coisas porque não é atributo dos objetos, mas presente dado por nós a qualquer deles. 

Vi alguém apontar para um pedestre, que usava par de sapatos velhos, e adjetivá-lo de infeliz; por causa da aparência do calçado. Mas quem usa o dedo, aponta e agride, geralmente desconhece o conforto que sente o caminhante. 

O tênis serve só de exemplo: é coisa como outra qualquer. Leia como se fosse roupa, jóia ou carro. É o que se vê todos os dias: especialistas medindo a felicidade dos outros, mas incapazes de medir os próprios indicadores. 

Julgadores comprovam que doença da cabeça é doença do dedo. Tudo que tocam deverá ser infelicidade; barra de ouro é pedra sem cor; pesada. Ignoram que atribuir felicidade aos objetos é mesmo andar com calos. 

Mas quem gosta do caminho veste qualquer coisa, põe os dedos em qualquer bolso, e vai por aí, com sorriso nu. Se tem calo, não lembra. Há tempo para a vida, não para o calcanhar, que choraminga. É muita coisa boa para ser vista. E enriquecer acaba sendo questão de aventuras gratuitas.

sábado, 16 de agosto de 2014

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Luto

Lamento a morte do governador porque ele era um homem. Não lamento mais que as de homens comuns, noticiadas diariamente nos nossos jornais. 

Eu tento, mas não entendo, elevarem o governador ao patamar divino. Choram por um estranho, mas não choram por outros. A minha crença é que o choro deveria ser mais econômico. Ou, pelo menos, mais igualitário. 

Seria bom se chorássemos pelos esquecidos, não pelos holofotes. O Pai de família só há um, e para quem acredita. Além dele, todos moram no mesmo conjunto; e merecem a mesma quantidade de lágrima. 

E se houve infortúnio ontem, tristeza maior é esquecer que infortúnio, para muitos, é a normalidade - que parece, muitas vezes, não merecer muito da nossa atenção. 

O choro parece ter virado propaganda, como muitas coisas na vida moderna. Mas um dia poderá ser diferente. Quando a dor não for medida por um terno.

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Mataram Otávio

Em uma conversa de bar, Otávio e Geraldo.

- Mulher devia ser algo menos bom; a vida seria mais fácil. Já me dói muito o pescoço! Disse Geraldo.

- Como assim, meu amigo?

Geraldo explicou:

- É que fidelidade é a minha mulher, segurando a coleira. Sempre que vejo uma mulher bonita, quero, pelo menos, elogiá-la. Mas toda vez sou impedido. A consciência, que é minha esposa vestindo o traje da mulher maravilha, puxa logo a corrente, me sufocando.

- Ah, deve ser por isso elas dizerem nós sermos cachorros.

- Sim, Otávio! Exatamente por isso. Nossa existência se resume a sermos estimados por elas. Fazemos tudo, por um biscoitinho. Mas fazemos, sobretudo, porque gostamos de respirar. E tudo que podemos pedir é que maneire os solavancos da coleira.

Ambos concordaram:

- Somos cachorros, mas só no bom sentido. Na nossa fantasia, corremos de patas sujas nas gramas das melhores fazendas; mas a felicidade mesmo está na obediência. Porque nossas mulheres são as nossas donas.

Foi então que apareceu a própria mulher maravilha, visivelmente irritada, dizendo:

- Vocês dois estão errados. Eu quero o divórcio, Geraldo. Existe homem que não precisa ser adestrado. Eu o conheci, lá no Castelo de Grayskull.

Foi assim, por um conto de gibi, que Geraldo, homem fiel, ficou só. Casou com o bar e, dizem, não foi tão feliz.

Sobre Otávio, não sei. Era coadjuvante. Viveu de suporte. É que a consciência, quando quer conversar, sai criando muita bobagem. Mas o que vale, no final das contas, é terminar a história.

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

O Captain! My Captain! - Walt Whitman

O CAPTAIN! my Captain! our fearful trip is done; 
The ship has weather’d every rack, the prize we sought is won; 
The port is near, the bells I hear, the people all exulting, 
While follow eyes the steady keel, the vessel grim and daring: 
    But O heart! heart! heart!         5
      O the bleeding drops of red, 
        Where on the deck my Captain lies, 
          Fallen cold and dead. 
  
2

O Captain! my Captain! rise up and hear the bells;
 
Rise up—for you the flag is flung—for you the bugle trills;  10
For you bouquets and ribbon’d wreaths—for you the shores a-crowding; 
For you they call, the swaying mass, their eager faces turning; 
    Here Captain! dear father! 
      This arm beneath your head; 
        It is some dream that on the deck,  15
          You’ve fallen cold and dead. 
  
3

My Captain does not answer, his lips are pale and still;
 
My father does not feel my arm, he has no pulse nor will; 
The ship is anchor’d safe and sound, its voyage closed and done; 
From fearful trip, the victor ship, comes in with object won;  20
    Exult, O shores, and ring, O bells! 
      But I, with mournful tread, 
        Walk the deck my Captain lies, 
          Fallen cold and dead.

sábado, 9 de agosto de 2014

Morar no cachorro



Decidi minha residência. Eu morarei na barriga de um cão. Ser engolido por meu Labrador, no chão de qualquer casa; habitar as costas peludas de um pastor, em grama ou terra batida; ir descansar na parede da esquerda, da direita, obedecendo as direções do termômetro, da ponteira de felicidade, do finalzinho das costas, do meu Yorkshire! 

Disse ao arquiteto que tenho pouca exigência. Eu quero meu espaço babado por meu cachorro. Essa coisa de móveis é bobagem. Não preciso de cama. Basta piso para mim, e mais para ele. Mas se faltar chão, vai bem: seremos coabitação. Moremos um no outro. Ignoro a razão de termos sonhos. Deveríamos ter cachorros. É suficiente voltar para casa: lugar das coxas arranhadas e canelas lambidas. 

O cão que tenho não late, porque canta. É assim ouvido de quem ama. Dele soltam-se muitos pêlos; sempre gostei de tapetes. Mas tem coisa que me chateia: o xixi e seu parente. E ai ele me dá os olhos e o focinho, e uma curta viagem ao pé da cadeira, que é como pede desculpa. Aí não tem jeito. Encomendo o sofá, dos mais caros, o mais bonito; e digo para o vendedor, gritando da janela: suba logo com isso, porque eu comprei só para ele! Nós viveremos bem, como romance infantil, terminando com os mesmos dizeres.

terça-feira, 5 de agosto de 2014

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

"Um verme principiou a roer as sobrecasacas indiferentes e roeu as páginas, as dedicatórias e mesmo a poeira dos retratos. Só não roeu o imortal soluço de vida que rebentava que rebentava daquelas páginas.". Carlos Drummond de Andrade

domingo, 3 de agosto de 2014

sábado, 2 de agosto de 2014